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Inaê Iabel Barbosa

“Corpos menstruantes”: qual é a importância desse termo?

Por: Inaê Iabel Barbosa, não-binárie e cientista social. @yoganaobinarie



Quando o assunto é saúde sexual e reprodutiva, o uso de termos como “corpos menstruantes”, “pessoas que menstruam”, “corpos com vulva e útero”, “pessoas que podem engravidar”, “corpos uterinos” e suas possíveis variações tem sido cada vez mais recorrente. Tanto para abordar questões relativas ao ciclo menstrual e à gestação, quanto nas lutas pela descriminalização e legalização do aborto, esses termos têm sido utilizados na intenção de reconhecer, visibilizar, contemplar e acolher a diversidade de existências que partilham da experiência visceral que é menstruar e carregar consigo o potencial de gestar uma vida no próprio ventre.


Entre essa diversidade de existências encontramos: mulheres cisgênero, pessoas não-binárias, homens trans e pessoas intersexo, em idade fértil, entre outras identidades. Isso nos demonstra dois fatos importantíssimos: (1) genitália não define identidade de gênero e (2) assuntos relativos à saúde sexual e reprodutiva não devem ser pautados com base no gênero.


Antes de seguir com a reflexão sobre a importância do uso do termo “corpos menstruantes” (e seus sinônimos), bora definir aqui alguns conceitos centrais para entender do que estamos falando:


- Genitália ou sexo: é a anatomia dos órgãos sexuais e reprodutores. A partir disso, podemos observar a existência de corpos com pênis e testículo, corpos com vulva e útero e corpos intersexo. A identificação da genitália, do sexo dos bebês, tem sido utilizada para definir o gênero das pessoas como menina/mulher OU menino/homem.

  • Intersexo: são pessoas que apresentam uma variedade de arranjos da anatomia sexual e reprodutora, que não corresponde às típicas definições binárias de corpos com pênis e testículo X corpos com vulva e útero. São pessoas que apresentam genitálias que misturam aspectos dessas duas anatomias sexuais e reprodutivas que são socialmente tratadas como opostas e diferentes. Devido a impossibilidade de definir o gênero dessas pessoas como menina/mulher OU menino/homem a partir de sua anatomia sexual e reprodutora, essas pessoas passam por cirurgias invasivas ainda enquanto bebês ou crianças para “corrigir” seus corpos e, assim, poder classificá-las dentro do binarismo de gênero.

- Binarismo de gênero ou binariedade: é a crença na possibilidade e o hábito de definir sexos e gêneros a partir de certas características corporais e de elaborar essa definição a partir de SOMENTE duas opções: pênis/menino/homem OU vulva/menina/mulher.


- Identidade de gênero: é a autoidentificação das pessoas como menina/mulher ou menino/homem, como nenhuma dessas duas opções ou como uma mistura delas. É sobre como as pessoas se entendem, como se sentem e como querem ser tratadas em relação ao seu gênero. Essa autoidentificação pode ser com o mesmo gênero que foi imposto à pessoa no seu nascimento, ou não.

  • Cisgênero: são pessoas que se identificam com o gênero que lhes foi atribuído no nascimento com base em sua anatomia sexual e reprodutora. São elas: mulheres cis e homens cis.

  • Transgênero: são pessoas que não se identificam com o gênero que lhes foi atribuído no nascimento com base em sua anatomia sexual e reprodutora. São elas: mulheres trans, homens trans e pessoas não-binárias.

  • Não-binárias: são pessoas transgênero que não se identificam como menino/homem OU menina/mulher. Ou seja, são pessoas para quem não faz sentido a divisão binária dos universos feminino e masculino como dois polos opostos e desiguais. Essas pessoas podem se identificar como uma mistura desses pólos binários ou como uma dissolução desses polos.

 

Com essas definições fica mais fácil de entender o que se quer dizer com “genitália não define identidade de gênero” (pois mulheres cis, homens trans e pessoas não-binárias partilham da experiências de ser um corpo com vulva. Assim como homens cis, mulheres trans e pessoas não-binárias partilham da experiência de ser um corpo com pênis). O outro fato (que assuntos relativos à saúde sexual e reprodutiva não devem ser pautados com base no gênero) é uma consequência dessa independência da identidade de gênero em relação a genitália: se existem mulheres com vulva e mulheres com pênis, assim como homens com vulva e homens com pênis, e pessoas não-binárias com vulva e pessoas não-binárias com pênis, não podemos falar em “saúde sexual e reprodutiva das mulheres” como sinônimo de “saúde sexual e reprodutiva de corpos com vulva e útero”.


É diante desses fatos que a substituição do termo “mulheres” por “corpos menstruantes” (e seus sinônimos) tem sido praticada, juntamente do uso da chamada “linguagem neutra” ou “linguagem não-binária”. É uma mudança comunicativa e linguística que pretende (e de fato tem o potencial de) realizar mudanças nas práticas de (auto)cuidado e de acesso aos sistemas de saúde.


Pois enquanto a existência de pessoas não-binárias, homens trans e pessoas intersexo menstruantes for negada ou desconsiderada, mecanismos transfóbicos que legitimam constrangimentos, humilhações, discriminações e violências estarão sendo alimentados.


Se a menstruação já é um assunto tabu, marcado pela desinformação e pelo silenciamento entre mulheres cisgênero em idade fértil (que é o grupo socialmente reconhecido como menstruante), quem dirá para outros grupos que não possuem tal reconhecimento e que, independentemente de qualquer preconceito, seguem sangrando periodicamente, vivenciando sintomas de TPM, dores, cólicas e inclusive engravidando, gestando e parindo...


Uma das lutas históricas do feminismo contra o sexismo é justamente por mudanças comunicativas, a fim de que não se utilize mais o “masculino genérico” em situações onde a presença de mulheres é notável. E a atual luta em defesa do uso de termos como “corpos menstruantes” é para que não se utilize mais o “feminino genérico” quando o assunto é a saúde sexual e reprodutiva da ampla diversidade de pessoas com vulva e útero, que menstruam e podem engravidar.


Mas falar em pessoas que menstruam é apagar as mulheres”, você poderia concluir rapidamente. Acontece que, quando o assunto é especificamente ciclo menstrual (ou saúde sexual e reprodutiva, de forma mais ampla), o termo “mulheres” não contempla outras identidades e existências que têm em comum com mulheres cisgênero em idade fértil a experiência do ciclo menstrual. Além de que nem toda mulher menstrua! Mulheres trans não menstruam porque não possuem vulva e útero, e muitas mulheres cis não menstruam por diversos motivos como: uso de DIU, uso contínuo de anticoncepcional, ocorrência de amenorreia ou menopausa, realização de histerectomia ou ligadura tubária/laqueadura, entre tantos outros fenômenos. Nesse caso o que acontece é não só a exclusão de outras identidades e existências, mas também a invisibilização da existência e o apagamento das experiências de uma multidão de mulheres que não menstruam (e que não deixam de ser mulher por isso).


Por outro lado, o termo “pessoas que menstruam” possui fronteiras menos rígidas e funciona como um termo “guarda-chuva”, que engloba, reconhece e acolhe a existência e as experiências tanto de mulheres cis quanto de pessoas não-binárias, homens trans e pessoas intersexo que menstruam e podem engravidar.


E nada impede, de qualquer forma, que a linguagem seja readaptada, quando necessário, para evidenciar questões que afetam as mulheres de uma forma diferente e muito particular. Diferente do que tentam argumentar algumas pessoas que resistem a respeitar e reconhecer a existência e as experiências de pessoas trans e intersexo, as mudanças comunicativas e linguísticas que têm sido propostas não visam excluir ou apagar ninguém (muito menos as mulheres, que têm sido protagonistas de lutas históricas e sociais extremamente importantes). Pelo contrário: é uma aposta na possibilidade de unir forças, de criar redes de acolhimento e de apoio mútuo entre pessoas que sofrem diariamente com a existência de sistemas de poder e dominação como o patriarcado e o machismo.








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